sábado, 15 de janeiro de 2011


Alvará de Soltura
(um breve ensaio)
por
unTroglodita

A liberdade política do corpo

Hoje, pelo menos nas sociedades realmente democráticas, o direito que o cidadão tem de ir e vir para onde quiser e bem entender — de se locomover, portanto — é algo tão natural que muitas vezes não nos damos conta do quanto esta garantia constitucional é vital em nossas vidas.

Quando uma pessoa vê este seu direito fundamental cerceado através de alguma arbitrariedade como, por exemplo, uma prisão ilegal, faz-se uso daquilo que é conhecido como um dos “remédios constitucionais” mais informais que há: o Habeas Corpus. Locução de origen latina, cuja expressão integral é "habeas corpus ad subjiciendum" [Que tenhas o teu corpo], sua origem no direito reporta-se ao século XIII, na Carta Magna da Inglaterra. Através deste dispositivo legal, os nobres mantinham um controle legal sobre as prisões efetuadas contra os cidadãos desta terra.

Aqui, embora este instituto tenha ingressado em nosso ordenamento jurídico em 1832, ele foi introduzido no texto constitucional brasileiro somente ao final do século XIX, em 1891.

Você conseguiria viver sem este direito fundamental hoje? Para quem nasceu e se educou numa sociedade livre e democrática, é simplesmente impossível!

Alguns sets do corpo através do tempo

Vamos partir da seguinte e insofismável premisa: todo ser humano nasce nu! Enquanto estivermos neste nível de fisicalidade, através dele, nosso corpo, nos expressaremos.

No curso dos tempos, ciclos de épocas e estilos, o corpo sempre foi explorado e visitado constantemente pela arte, nas suas mais variadas manifestações. Desde as lindíssimas pinturas rupestres em Lascaux, França, há mais de 17.000 mil anos, mostrando a complexa realidade que ligava o homem — também animicamente — ao mundo animal, o corpo sempre teve uma dimensão especial para o criador, fosse na simetria e na harmonia das formas do mundo grego, na religiosidade devocional de Michelangelo ou na decomposição iconoclasta cubista de Picasso, para citar apenas três exemplos bem singulares da representação corporal no tempo e no espaço.

Não vou cometer o absurdo de dizer que a arte pictórica é estática; no entanto, além das telas, estátuas, interiores de cavernas e afrescos, existem as salas de concerto, os palcos dos teatros, nos quais se desenvolveram os balés e as óperas.

De acordo com os registros, o primeiro balé aconteceu na Itália, em virtude das núpcias entre o Duque de Milão e Isabel de Áragon, no ano de 1489. Quanto as óperas, tudo indica que as duas primeiras, Dafne e Eurídice, de autoria do compositor italiano Jacopo Peria (1561-1633), apareceram bem no final do século XVI. Mas no que diz respeito a dramaticidade, a primeira delas foi Orfeu, criada pelo também italiano Claudio Monteverdi (1567-1643).

Mesmo com todas as tentativas para se popularizar a ópera em seus primórdios, ela não tem, atualmente, a mesma penetração e popularidade que possuem a música popular ou o próprio rock, embora as obras — os compositores do gênero — tenham beleza e qualidades eternas.

Notem que nestes gêneros, a ópera e o balé clássico, a expressão do corpo ficou restrita aos limites desta cultura musical. Beleza, força, sensibilidade, agressividade, equilíbrio e desordem, todas as mais diversas formas de manifestação emocional e comportamental, típicos da natureza humana, sempre estiveram presentes nos teatros e nas salas de concerto — e ponto final, por mais genial que fosse a concepção!

Praticamente meio milênio nos separam destes momentos seminais na história da música. Mas o que aconteceu a partir da metade do século XX que praticamente estilhaçou a tradição social, cultural e musical do ocidente? Este personagem revolucionário, o corpo, passou a ser, simultaneamente, vítima e réu. Logo, o ator-personagem-corpo passou a protagonizar muito mais um papel de vilão, do que qualquer outra coisa.

Anos 50 — A penela de pressão explodiu!

Apenas para título de introdução, você já parou para pensar como seria o mundo, se este fosse povoado unicamente por uma sociedade euroamericana, sem negros, latinos e índígenas? Não? Eu respondo: seria um mundo patético, excessivamente racional, sem graça, de impossível convivência — e sobrevivência! —, digno do suicídio. Igualzinho a uma mulher extremamente linda, porém sem grança e sem um pingo de encanto; o mesmo que um arroz sem sal, cebola e alho. Portanto, uma realidade sem gosto, entendeu? São estes três troncos étnicos que dão ao mundo aquilo que os salseiros cantam e chamam, em espanhol, de “sabor”.

Graças a Deus, este desvio ou qualquer deplorável desejo eugenista jamais se concretizou na Terra. Ao contrário, cada vez mais, rumamos para o estabelecimento de uma sociedade planetária “euroasiafroamericana” — de terra e mar!

E era exatamente isso que o mundo necessitava — pedia inconscientemente — quando transbordou os anos 50. A sociedade ocidental não sabia, mas os seus dias de monocrático deleite no Éden fossilizado do conservadorismo, estava chegando ao fim. Uma nova e rebelde companhia se aproximava para infernizar a mesmice. O fruto da transgressão, cheio de fogo e criatividade, encontrava-se maduro nos bastidores da música, e pronto para ser ofertado à sociedade americana e todo o mundo.

O nascituro, um genial quaternário da música norte-americana, aguardava apenas o momento certo para surgir e pular o muro da escola para realizar o seu destino: gerar mais liberdade de expressão no set musical.

Saias menores e decotes maiores; cortes de cabelo e danças irreverentes; comportamento e atitude inconvencionais; James Dean em “Rebel Without a Cause”, “Juventude transviada” (1955); Marlon Brando em “The Wild One”, “O Selvagem” (1955), sim, eu sei!, aconteceram fatos extremamente importantes que mexeram com os padrões comportamentais da sociedade até meados da década de 50.

Não quero cometer injustiças, embora já esteja fazendo algumas — para não dizer muitas. No entanto, parame redimir um pouco, é importante destacar neste cenário de libertação e maior expressão do corpo atravésdos palcos, dois músicos geniais que muito contribuíram para o estabelecimento de uma nova ordem nos setsa de presentação musical: Little Richard e Jerry Lee Lewis, também conhecido como “The Killer”.
Richard Wayne Penniman, Little Richard, é um dos grandes fenômenos na histórica explosão do rock & roll nos anos 50. Sendo um dos mais destacados contribuintes na paternidade deste novo estilo, Richard era um artista explosivo, pesado e bastante diferenciado para aquela época. Além do mais, era um músico negro gay. Portanto, juntava dois componentes altamente explosivos para o mundinho comportado — e racista! — daquela época. Sua carreira começou de uma maneira forte e bem ao seu estilo com o que se tornou um dos mais conhecidos e importantes clássico do rock, Tutti-Frutti (R. Penniman, D. LaBostrie & Joe Lubin/1955), no qual Richard canta, na abertura da canção, o famoso refrão “wop bop a loo bop a lop bam boom”.
Sua presença no palco era indiscutivelmente marcante, pois, para ele, cantar e tocar a sua música apenas sentado em seu piano, deveria ser um estorvo. Uma das formas de contornar este “embaraço”, foi simplesmente tornar o piano parte do seu corpo e de sua dança nos show. Little Richar era explosivo! Uma vanguarda do emergente rock.

Jerry Lee Lewis não ficava atrás do genial Litte Richard, pois se tivermos que construir um pedestal em homenagem aos grandes pioneiros do rock & roll, estes dois deverão estar lá abraçados e de mãos dadas.
“The Killer”, o título que imortalizou Lewis, fazia jus a sua música e suas apresentações nitrogliceridas, pois, assim como Little Richard, ele não era, de jeito algum, um artista comportadinho ao seu piano. Não, muito pelo contrário! Seus dois primeiros hits de 1957, Whole Lotta Shaking Going On e Great Balls Of Fire, o maior de todos em sua carreira, traziam a marca de sua música e personalidade: agressividade, potência e uma musicalidade incomum para aqueles padrões musicais. É conhecido em sua biografia, o fato de ter queimado o seu piano, ao termino de sua apresentação, por não se conformar em ter o concerto encerrado pelo gênio Chuck Berry — e não ele, Jerry Lee Lewis.

Dá para imaginar o que Frederic Chopin ou Franz Liszt sentiriam, e diriam em seguida, ao ver um negro gay cantanto Tutti-Frutti ou um branco louco queimando o seu piano após cantar Great Balls Fire?

Enquanto escrevia estes parágrafos, fiquei pensando em algumas fotos do saxofonista tenor negro, Big Jay McNeely, em uma de suas inconvencionais apresentações, povoada de malabarismos nos palcos enquanto tocava o seu sax. Uma destas fotos, expressa tudo o que pode ser dito a respeito das raízes de libertação e maior expressão do corpo — individual e social — nesta época, bem no início dos anos 50, antes mesmo de todas as grande estrelas do futuro rock & roll.

A imagem que encantou-me é a síntese perfeita do que estava sendo ansiado pela juventude na alvorada dos anos 50, e por mais que eu escreva, jamais vou conseguir dizer o que a lente desta câmera capturou neste show de Big Jay McNeely. Notem, na fila da frente, à direita, o frenesi de três jovens que mais parece um êxtase em três tempos.

Esta foto diz tudo!
Mas a despeito de tudo o que já tinha acontecido, onde estava o grand finale que nada mais era do que a chegada de um novo princípio? A taça de sundae já estava pronta, toda deliciosa; entretanto, faltava a ornamentação mais importante de todas: a cereja no topo de tudo!
Esta sobremesa, no entanto, não é para ser consumida por meros mortais: o sundae com sua frutinha é um objeto de desejo ou de consumo inalcançável às massas. Este manjar é um privilégio dos eleitos, restrito às estrelas e seus dons.

Falarei, agora, um pouco sobre quatro luminares do rock que se lambuzaram com este manjar.

Corpo Primeiro: Tome! Vamos beber fogo e música “on the rock” — e sem gelo!
Com Elvis, o corpo dançou
Nos anos 50, realmente muitas coisas motivaram a eclosão de uma nova cultura musical, sim!, mas a metade do ano de 1954 pode ser identificada como o Éden do rock, o período — o espaço primordial — onde a inocência seria sepultada, para o bem do corpo e do novo estilo emergente.

Em 05 julho de 1954, um desconhecido cidadão do Mississipi que atendia pelo nome de Elvis Aaron Presley (1935-1977), gravou pela Sun Records um compacto com dois grandes hits: no lado A, That's All Right ´Mama´ (Arthur Crudup/1946) e no lado B, Blue Moon of Kentucky (Bill Monroe/1946).

Pronto, o estrago já estava feito! Aliás, para ser justo, o estrago já tinha sido feito — ainda em silêncio — poucos meses antes desta gravação, quando Bill Haley & His Comets acenderam o rastilho desta revolução cultural, gravando o que se tornaria um dos mais famosos e importantes clássicos do rock 'n' roll, (We're Gonna) Rock Around the Clock (James E. Myers & Max Freedman), em 12 de abril 1954, na Pythian Temple.

Logo, para gerar mais confusão e muita controvérsia, pois sem polêmica não se chega a lugar algum, coube a Elvis Presley dois atos históricos: por a cereja na taça do rock e, ao mesmo tempo, tirar a folha de parreira que escondia e sufocava a criatividade e a liberdade na sociedade e na música — especialmente em relação a performance do corpo!

Porra, só colocar a frutinha vermelha em seu devido lugar, já era máximo. Mas Elvis foi além dos limites e...literalmente “tirou o corpo do armário”; despertando-o de sua letargia, tornando este um elemento essencial na performance musical.

Como ele não era somente fachada, pois tinha voz, grande talento musical e um carisma sem par, Elvis simplesmente tragou o mundo com seu estilo inovador e chocante para a sociedade dos anos 50.

O Rei do Rock, um homem branco e charmoso que carregava a força do gospel, da country music e do rhythm and blues, desafiou os padrões comportadinhos do seu tempo, porque não estava apenas com vontade de dançar: Elvis rebolou e requebrou seu corpo como nenhum homem havia feito até então — especialmente da cintura para baixo.

Que escândalo, uma verdadeira indecência e afronta à moral e aos bons costumes! Coisa do diabo!

Se era coisa do diabo ou dos anjos do senhor, eu não sei, mas além de ter sido maravilhoso e esteticamente impressionante, ficou claro, a partir daí, que um homem, um cantor poderia dançar e rebolar, sim.

Ah!, mais uma coisinha. Se não era coisa do satanás, ele bem que morreu de inveja. Isso eu afirmo!

Embora não fosse um dançarino na acepção da palavra, ele introduziu uma atitude, um estilo ou ordem comportamental que começou a destronar a imobilidade do corpo nos palcos musicais, quebrando as correntes que atavam-no ao conservadorismo e a repressão da libido.

Este caminho sem volta e ponto de mutação na cultura e na música ocidental, o nascimento do Rock´n´Roll, cuja multipaternidade fez questão de chamar Elvis Presley de Rei e papai, marcaria — a ferro e fogo — carreiras de músicos e artistas por toda a Terra. Fato este que acontece até hoje.

Nos anos que se seguiram a este período seminal, outras estrelas surgiram e entenderam o recado dado, colocando mais gasolina na fogueira libertária do rock, pois o corpo, e não somente a música, passou a ser um instrumento de comunicação e reforma. Para tanto..., bastava saber tocá-lo como um instrumento.

Este crédito histórico e todo pioneirismo é dele, de sua carreira — e de mais ninguém.

Elvis não morreu? Ok, ok, eu entendo! Porém, o mais importante: a carreira de dele foi um trampolim para que o corpo humano — em vez de mergulhar no caos do modismo e do esquecimento — passasse a ocupar um lugar cativo e eterno na performance dos palcos em todo o mundo. 

Corpo Segundo: Quer dançar comigo? Não, quero tocar você!
Com Chuck Berry, a guitarra foi literalmente pro saco!
Para início de conversa, o papo tem que ser reto, portanto: o rock não existiria sem esse cara!

Entre nós, humanos, não há espaço para o incriado bíblico, pois todos temos algo conhecido como paternidade. Até mesmo com o Rei do Rock, Elvis, foi assim. Mas com o rock´n´roll, a coisa é complicada quando querermos saber quem são os seus pais.

Por exemplo, se qualquer dia destes aparecer uma Maria chuteira reivindicando a maternidade do rock, acho que a pretendente — e pseuda mãe — cairia em desgraça e passaria por uma situação vexatória única. Por que? Muito simples, ora! O advogado da reclamante — a pilantra — solicitaria um exame de DNA do reclamado, o rock. Mas como o eterno jovem é um rebelde nato, ele só faria a tal solicitação através de um mandado de segurança. No entanto, quando os otários vissem o laudo do exame, levariam um susto com o resultado da herança genética desta complexa criatura — algo digno de deixar o Resident Evil se mordendo de inveja.

O exemplo citado é uma forma jocosa e absurda de evidenciar a complexidade deste gênero musical, quando tentamos entender a sua gênese e o seu momento seminal no cenário da sociedade norte-americana dos anos 50.

É extremamente difícil — embora seja gostoso! — falar sobre a genealogia do rock. No entanto, quando navegamos pela “foz” deste gênero musical, vemos que há três correntes ou rios que dão forma ao seu “delta” estilístico: o country, o gospel e o R&B — rhythm and blues. Estes três, consubstanciados ao novo estilo em si, serão fortes e evidentes agentes influenciadores nas obras dos compositores, cantores e instrumentistas que surgiriam a partir daí.

Esta é a razão pela qual, na árvore genealógica do rock, chamamos estes três gêneros como os estilos-sementes (ou raízes) que geraram este novo gênero musical, a partir da metade do século XX, o berço do rock.

No entanto, não seria errado incluir nestra trinca o boogie-woogie.

Escute com toda atenção Glenn Miller (1904-1944), Tommy Dorsey (1905-1956), Benny Goodman (1909-1986), Count Basie (1904-1984) e o conjunto vocal Andrews Sisters (décadas de 30 a 50) e, em seguida, Jerry Lee Lewis. Você não terá como negar: o boogie-woogie é, sim!, uma importantíssima raiz-semente do rock.

Mas é daí em diante, também, que tem início uma gostosa confusão, porque surgem os primeiros subgêneros do recém-nascido rock´n´roll.

Um quarto de século antes deste período histórico, precisamente em 1926, na cidade de Saint Louis, Missouri, nascia Charles Edward Anderson Berry ou Chuck Berry, aquele que ficaria mundialmente conhecido pelo seguinte título: Pai do Rock.

Tudo bem! A paternidade é complicada mesmo, todavia é certo: se Elvis é o Rei, Chuck Berry é o pai. Méritos não lhe faltam para tamanha honraria.

Cantor, compositor e guitarrista, Berry pode ser colocado ao lado dos grandes hitmakers da história do rock como os astros do rockabilly Carl Perkins (1932-1998) e Eddie Cochran (1938-1960), por exemplo. Somente estes três, para não citar outros importantíssimos compositores, consolidaram um repertório que se mantém influente, passado mais de meio século.

Isoladamente, Chuck Berry criou simplesmente uma penca de hits que foram regravados pelos mais importantes grupos, instrumentistas e cantores rock e de muitos outros gêneros musicais. Esta lisonja reservada, não é comum, pois são tantos os seus sucessos que teria que fazer uma longa lista, tantos de suas inúmeras canções históricas como das versões feitas.

Você acha que é exagero de minha parte? Tô me lixando para isso, tá? Mas gala com tamanha proficuidade é rara na história da música. O negão é o Pai do Rock, mesmo, pois — com quase 90 anos — continua a fecundar as gerações de artistas, o que torna o seu poder seminal eterno.

Além de tudo isso, Chuck Berry foi um dos músicos que contribui — e muito! — para a performance de um guitarrista nos palcos, propiciando uma postura corporal mais solta, alegre e provocante.
A canção Johnny B. Good, o maior sucesso de toda a sua carreira, composta em 1955 e gravada em 1958, diz algo fantástico:

“He used to carry his guitar in a gunny sack”
“Ele costumava carregar sua guitarra num saco de pano”

Na letra, fica claro que era nesta modesta condição que o virtuoso músico caipira transportava o seu instrumento.

Pois bem! Nos palcos e apresentações, Chuck Berry tirou a guitarra deste saco e a colocou entre as pernas, debaixo do seu próprio saco. Super visual, esteticamente incrível, também. Com esta postura de palco e sua excelente voz cantando músicas quentes, cheias de garotas novinhas e carros, Berry fadou-se ao êxito como rockstar e emplacou uma quantidade absurda de músicas que hoje são clássicos do rock.

Portanto, com Chuck Berry a guitarra passou a tocar o corpo humano, e vice-versa, dando início a uma parceria fundamental para rock. 

Corpo Terceiro: Você vai dar o duro pra mim!
Com James Brown, o corpo saiu do gueto, brilhou nos palcos e venceu!
Atualmente é muito fácil ver um cantor dançando das formas mais variadas pelos palcos do mundo. Com talento ou absolutamente desprovido da “cereja”, hoje é mole rebolar ou mesmo ficar nu em um show. Mas fazer algo com pioneirismo e originalidade é coisa muito rara, temos que admitir.

O boom do rock catapultou muito gente que não seguiria esta tendência, embora tenha se valido dela para impulsionar a sua carreira, para em seguida adquirir folego e personalidade própria.

Dois anos após Elvis Presley alcançar o estrelato nas paradas norte-americanas, surgiria um mito sem igual em toda a história da música do século passado.

Em março de 1956, a gravadora Federal Records lançava um single com a canção Please, Please, Please (James Brown & Johnny Terry) no lado A, que se tornou uma grif do seu intérprete por toda a sua carreira. Nesta data histórica, surgiu o artista que normalmente era anunciado pelo seu MC da seguinte maneira:



“Mr. Danamyte, Soul Brother Number One, The Man of the Crow, The Hardest Working Man in Show Business”

Né pouca merda não, viu? O crioulo era coisa importante pra porra!

Sim, esse ano testemunhou o aparecimento do espetacular e genial James Brown, que mais tarde seria aclamado e reconhecido mundialmente como The Godfather of Soul, o legitimo e único Pai do Soul.

Assim como o rock´n´roll tem um rei e um pai; respectivamente, Elvis e Chuck Berry, o soul possui o seu reinado e paternidade centrada em um único nome: Mr. Danamyte!

James Joseph Brown ou James Brown (1933-2006), nasceu na cidade de Barnwell, Carolina do Sul, e como tantos outros artistas de seu tempo, foi fortemente influenciado pelo gospel e o rhythm & blues. No entanto, ele conseguiu se destacar no cenário musical, ao apresentar um raríssimo perfil de músico multitalentoso.

James Brown era compositor, instrumentista, bandleader, businessman e possuidor de uma voz poderosa. Mas quando você assiste algumas de suas magistrais apresentações, se dá conta que ele foi, também, um dançarino genial que soube usar este dom como forma de projetar a sua obra e seu raro talento, o que contribuiu enormemente na edificação do mito que hoje conhecemos.

Com uma performance de palco originalíssima, James Brown mostrou ao mundo o jeito negro de dançar e comandar a sua banda; uma mises-en-scène que fazia dos seus shows e do seu palco, um ato único, no qual o seu corpo atuava — e isso é fantático! — como batuta e maestro. Com movimentos corporiais mais diversos, esta criatura conseguia “reger” todos os seus músicos com uma precisão e harmonia singulares — nunca vistos até então.

Seu corpo era, portanto, o diretor de cena e, ao mesmo tempo, maestro. O Pai do Soul, encarnou e unificou, então, duas funções no palco: a de dançarino e bandleader.

Tudo isso que digo, está evidenciado em alguns momentos de sua carreira, como as apresentações no programa de TV de Ed Sullivan (1965 & 1966), no histórico Live At The Boston Garden April 5, 1968, no programa de TV Soul Train (1971) e no concerto Live At The Olympia, Paris (1971).

Dentre estas admiráveis apresentações — e existem muitas outras —, eu gostaria de destacar este concerto de 1968.

Na noite seguinte ao brutal assassinato do líder humanista e nobel da paz Martin Luther King (15 janeiro de 1929 – 4 de abril de 1968), The Man of the Crow realizou um show memorável. Diante das condições mais adversas, pois protestos e revoltas coletivas se instalaram em vários pontos dos EUA, James Brown realizou um concerto arriscado, por razões óbvias. Mesmo assim, ele se apresentou e até contornou um incidente e toda uma confusão no meio do show.

Mas o Live At The Boston Garden April 5, 1968 foi um concerto fenomenal!

É muito interessante ver o seguinte...

Elvis não era um dançarino, mas introduziu uma revolução nos hábitos e costumes na sociedade dos anos 50 com seu modo de se apresentar, em especial, sua dança sensual, provocante. Já James Brown, um dançarino na acepção mais nobre, fundou um estilo, o soul, e um modo de dançar genuíno e incomparável, diria até inimitável, pois tornou-se uma marca pessoal e instranferível.

É impossível dissociar música e dança na carreira criativa deste músico invulgar, porque James Brown estabeleceu um estilo musical altamente complexo e tão marcante que passou a ser referência musical para cantores, instrumentistas e dançarinos de gêneros orinudos do soul, com o funk, o hip-hop e o hap.

Há bem pouco tempo, não mais do que três anos, eu tive a oportunidade de me encontrar com um grande monge de um mosteiro do Butão — praticamente um homem santo. Eu fiz a seguinte experiência. Coloquei o respeitável asceta para escutar as seguintes músicas do James Brown:

Papa's Got a Brand New Bag (1965)
I Got You (I Feel Good) (1965)
Get It Together (1967)
Cold Sweat (1967)
I Got the Feelin' (1968)
Say It Loud - I'm Black and I'm Proud (1968)
Sex Machine (1970)
Get On The Good Foot (1972)
Papa Don't Take No Mess (1974)

O devotado monge ficou em silêncio e escutou tudo com atenção, na mais absoluta concentração. Ao término e sorrindo, disse: “Você consegue imaginar este grande homem, sentado em meditação nas montanhas do Himaláia? Eu não, até porque seria um desperdício. E tenho certeza que o senhor Deus, também acharia a mesmíssima coisa. O destino desta criatura é dançar! Ele é um filho de Shiva e a encarnação do ritmo!”.

Logo em seguida soube, através deste mesmo monge, que Sri Ramakrishna Paramahamsa (1836-1886) costumava dançar durante suas comunhões exácticas

Não é a toa que James Brown declarou numa entrevista: “Minha música não foi escrita por Mozart, Beethoven, Bach ou Schubert. Ela foi escrita por mim e por Deus”.

Que parceria, hem? 

Corpo Quarto: com você eu vou longe!
Com Jimi Hendrix, dois corpos tomaram forma
Chegamos ao ponto de transição ou melhor dizendo, de ebulição máxima que estabeleceu um novo paradigma não só na história do rock, mas da música do século XX. Algo bastante semelhante ao que ocorreu no jazz, através de Charlie Parker (1920-1955), Miles Davis (1926-1991) e John Coltrane (1926-1967).

Até meados dos anos 60, o máximo que a guitarra tinha atingido no seu caráter técnico, estava nas mãos de Eric Clapton e do seu devastador trio composto Jack Bruce e Ginger Baker, o grupo inglês Cream (1966-1969).

Conhecendo a discografia do Cream e assistindo as suas apresentações ao vivo, não há como refutar a famosa frase “Eric is God”. Mas o Cream não se resumia a Eric Clapton: o trio todo era virtuoso, pois Jack Bruce (baixo) e Ginger Backer (bateria), assim com Clapton, eram músicos geniais. E foi na terra natal destes músicos impressionantes, inclusive daquele que chamavam de Deus, que surgiria o reformador da guitarra no século XX.

O final da primavera britânica de 1967, guardava uma semente muito especial em seu solo: James Marshall Hendrix ou Jimi Hendrix (1942-1970), pois seria lá, na terra da rainha, que seria lançado o primeiro álbum The Jimi Hendrix Experience - Are You Experienced (1967).

É claro que o álbum todo é maravilhoso, seja ele a versão britânica ou americana, mas uma audição especial às faixas Third Stone From The Sun e Are You Experienced?, já fariam qualquer pessoa mais atenta pensar: “cara, isso aí é diferente e ainda não foi pensando em termos musicais!”.

Costumo dizer que Hendrix, assim como Garrincha, nasceram para mostrar aos homens a possibilidade de se realizar o impossível, entende?

Embora tenha sido influenciado por importantes músicos e guitarristas de blues norte-americanos, Hendrix forjou um estilo, um jeito de tocar e toda uma técnica guitarristica jamais vista no cenário musical.

Certa vez, Hendrix disse: “Eu quero fazer com a minha guitarra, o que Little Richard faz com sua voz”. Na minha opinião, ele superou este desejo!

A Árvore Genealógica do rock, como já deu pra notar, jamais será um consenso. Embora Elvis seja o Rei e Chuck Berry o Pai, o DNA do rock — graças a Deus! — é uma miscigenação de tirar qualquer nazista do sério. No entanto, com Jimi Hendrix, não há espaço para qualquer dúvida: ele tinha DNA próprio, foi alfa e arquiteto único de toda uma revolução técnica, estilística e comportamental neste instrumento. Estamos no século XX, e guitarristas como o genial Yngwie Malmsteen — e uma fila de virar o quarteirão —, rendem constantes homenagens a este filho de Seattle.

Quanto a revolução no âmbito comportamental, ciclo que levou o corpo a conquistar uma nova dimensão e participação no palco, eu diria que este momento foi tatuada no inconsciente coletivo, a partir da apresentação de Hendrix no histórico The Monterey International Pop Music Festival (1967), realizado entre os dias 16 e 18 de junho, na cidade de Monterey, California.

Após tocar os sucessos do seu primeiro álbum e recriar Like a Rolling Stone (Bob Dylan/1965) com uma versão emocionante, linda, Hendrix encerrou a sua participação em Monterey, tocando Wild Thing (Chip Taylor/1965) de uma maneira absolutamente sensual e com um tempero ultra selvagem que deixou muitos chocados; e de um modo geral, chapou a todos, pois ninguém esperava uma interpretação tão bestial e genial, ao mesmo tempo.

Já se passaram quarenta e três anos, mas esta performance é considerada histórica e transformou-se numa referência musical estética que influencia e inspira músicos e artistas em pleno século XXI.

Mas esta forma de se apresentar no palco que tornava o músico e sua guitarra em ator único em cena, num dado tempo pesou nos ombros deste músico genial, pois o público queria ver, consumir esta performance.

Mas Hendrix conseguiu superar esta tendência vazia e sem propósito porque música sua música não se resumia a uma constante destruição de guitarras e equipamentos no set musical.

Um olhar mais crítico, acurado, observará que em sua apresentação no histórico festival de Woodstock (1969), Hendrix já apresenta um perfil performático mais cool; não contido, apenas mais sóbrio — sempre fazendo sua característica mises-en-scène —, contúdo bem longe da personalidade explosiva e alucinada que interpretou Wild thing em Monterey, três anos antes.

A herança de Jimi Hendrix é algo complexo, pois abarca não somente a sua inovação performática nos palcos, mas um repertório de composições que transcendem a própria vanguarda como Voodoo Chile (Electric ladyland/1968) e Machine Gun (Band of Gypsys/1970), por exemplo.

Por este e muitos outros motivos, sempre digo que Jimi Hendrix, este músico prometéico, encontrou — e mostrou!!! — a quarta ponta do triângulo.

Inconclusão

Minhas observações a respeito destes magistrais músicos, aqui citados como agentes de libertação do corpo nos palcos, não encerram o assunto, é claro, embora o tema tenha sido muito pouco explorado pelos cronistas e interessados no assunto.

A ausência de reflexão em torno deste importante tema, me fez desenvolver este pequeno ensaio. O corpo — o veículo de realização do artista — foi meio esquecido e posto de lado nesta apreciação evolutiva de sua libertação nos sets musicais.

Cada um destes músicos trouxe, ao seu modo, de uma maneira original e espontânea, a seguinte lição artística: um músico e seu instrumento podem — e devem! — ser cênicos! A liberdade foi uma consequência natural.
A repressão foi sepultada, e o corpo, redimido, ressuscitado.

“Free at last! Free at last! Thank God Almighty, we are free at last!” — Final do discurso I Have A Dream, pronunciado por Martin Luther King em 28 de agosto de 1963, Lincoln Memorial, Washington D.C
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“Long Live Rock 'n' Roll”
(Ritchie Blackmore & Ronnie James Dio/1978)


P.S: Este ensaio é dedicado a todas as vítimas e desabrigados das enchentes, na região serrana do Rio de Janeiro em 2011 e, também, a Ronnie James Dio (10 de julho de 1942 – 16 de maio de 2010) – descance em paz.

Ilustrações para baixar:

arthur ´big boy´ crudup [1946] that's all right [versão original]
bill monroe & the blue grass boys [1947] blue moon of kentucky [versão original]
elvis presley [1954] that's all right
elvis presley [1954] blue moon of kentucky
little richard [1957] here's little richard - slippin' and slidin'
jerry lee lewis [1958] the original sun masters - high school confidential
chuck berry [1965] promised land
glenn miller [1939] in the mood
tommy dorsey [1938] boogie woogie
benny goodman [1937] roll 'Em
count basie [1943] red bank boogie
andrews sisters [1941] boogie woogie bugle boy
james brown [1967] bring it up (hipster's avenue)
cream [1968] live cream volume II MFSL - steppin' out
jimi hendrix [1970] band of gypsys - band of gypsys - machine gun
martin luther king [28 de agosto de 1963] i have a dream

sábado, 25 de dezembro de 2010

Rio, 27 de Agosto de 1990

Segunda triste de um agosto blues
(Em Memória de Stevie Ray Vaughan)

No início deste mês, a comunidade bélica internacional se reuniu mais uma vez para deixar o nosso planeta azul, a Terra, mais triste. No entanto, no final deste mesmo mês, no dia 27 de agosto, o Mississipi que corre em nossas veias ficou mais seco e árido; e a Terra, verdadeiramente, ficou mais triste, pois você se foi...Todavia, ao ir, você deixou ressoando em nossos corações não apenas o blues, mas sim — e acima de tudo — a marca, a profunda marca do seu eterno e virtuoso blues! A admiração pelo seu talento e a marca que você imprimiu foram tão profundas que agora todos nós, órfãos do seu talento, choramos de dor! Sempre escutamos, porém jamais poderíamos imaginar que o blues fosse tão fundo e machucasse tanto. Você sempre soube disso, nunca nos escondeu, mas é que o seu talento era tão grande que todos nós ficamos embriagados pela beleza, pela estética genial do seu blues. Agora...,tecnicamente, você foi tão incrível que o blues tornou-se sinônimo de festa! Stevie, estou tentando ser impessoal, porém eu não consigo. Meu velho, há vinte anos, você sabe disso muito bem, Jimi Hendrix, o seu ídolo, ídolo de todos nós, também se despediu tragicamente de um mundo em conflito. Por que você repetiu essa história, Stevie? Aqui, hoje, eu tenho certeza que o mundo da arte definitivamente ganhou — e ao mesmo tempo perdeu — o maior talento contemporâneo da guitarra blues! Todavia, aí, aonde você está, em alguma confraria sagrada do blues, todos também vão ficar, com certeza, bastantes alegres e felizes da mesma forma como todos nós sempre ficamos. Stevie Ray Vaughan: sabe por que a sua lacuna é insubstituível? Porque você era tão fera que ao morrer levou a lacuna consigo! O impacto de sua morte foi rápido e fulminante como “Sccuttle Buttin'”. Foi a interpretação mais triste, mais blues de toda a sua carreira! Nessa você foi fundo demais! Por tudo o que você representou não só para mim, mas para a tradição do blues, valeu! Minha gente, se “Eric is God, Stevie is...” Não sei! Ou será que sei? Pouco me importa, but Stevie is blues!

I love the blues!
I love you, Stevie Ray Vaughan!
God bless you!




O mesmo artigo foi lido na abertura do programa "Mississipi Dreams", da extinta Rádio Fluminense-FM, "A Maldita", Niterói, Rio de Janeiro. Este é o áudio:



Rio, inverno de 1990

P.S.: Hoje posso dizer que esta homenagem foi o primeiro texto que escrevi em minha vida. Na época, estava me sentindo muito mal por causa do falecimento do SRV. Não sabia o que fazer, mas algo deveria ser feito. Através de um sonho, entendi que deveria escrever algo, uma homenagem a Stevie. Assim se fez! Me senti melhor e aliviado da tristeza, logo que terminei este texto. Estou mantendo ele como foi redigido na época, há 20 anos. Portanto, foi nesta data que teve início a minha vida como escritor.